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terça-feira, 23 de junho de 2015

O TREM DE AÇO




A Biriba aproxima-se da estação com sua buzina rouca e seu porte altivo, enchendo a atmosfera com o bafo quente do seu possante motor, que ronca forte, porém sem agredir os ouvidos.
O Trem de Aço ( D.P. ), se alinha na plataforma para receber os passageiros que lotam a estação com suas bolsas, malas, pacotes e crianças, muitas crianças.
Entre eles está um garotinho que aparenta oito anos de idade. Este observa excitado a movimentação de todos aqueles alegres passageiros, embarcando no luzidio trem prateado com seus confortáveis assentos azuis.
Seu coração bate acelerado (quase a sair pela boca !). Sua ansiedade é grande Quer embarcar logo e sua maior expectativa está em sentir o “ cheiro do trem “ e ver de perto, mais uma vez, o quadro fixado na cabeceira daquele luxuoso carro de passageiros da Central do Brasil. Ali encontra-se gravado em alto relevo, dois grandes peixes de olhos brilhantes e barbatanas avantajadas.
E o garoto pisa afoito nos degraus retráteis, cujos desenhos também lhe chamam a atenção, sobe puxando o pai pelas mãos, apressado e ansioso, pois o grande momento, esperado há mais de um ano, se aproxima.
Quando o chefe do trem abre a porta, o garotinho emocionado não consegue conter suas lágrimas e leva a mão nos olhos tentando disfarçar. Respira fundo, na tentativa de inspirar a maior quantidade possível daquele “ cheiro de trem de aço “. Quer encher os pulmões e se extasiar com aquele perfume, naquele momento tão almejado, pois isso acontecia somente uma vez por ano, quando o pai, ferroviário, obtinha um passe livre para viajar naquele trem.
E fica , mais uma vez, extasiado com tudo o que vê.
O interior do carro é um primor em limpeza e organização.
As poltronas, de um deslumbrante tom azul, são as mais confortáveis que já sentou em toda sua vida.
E o cheiro ?
Ah !, o inebriante e inconfundível perfume do Trem de Aço jamais lhe sairia da mente pelo resto de sua vida, de tão agradável e misterioso que era.
O pai agora já lhe soltara as mãos e ele caminha sozinho até o primeiro assento. Agora, finalmente, ele estava ali, pertinho dos seus adorados peixes, que parecem observá-lo, com seus olhos brilhantes.
E quando olha novamente para aqueles misteriosos e apaixonantes peixes prateados, após um ano todo de expectativa, não mais consegue dissimular sua emoção e desaba num choro convulsivo, procurando o colo da mãe em busca de alento.
A mãe, sem entender o que se passara, procura silenciá-lo, pois os passageiros já começam a observar, curiosos, aquele cena.
Oferece-lhe o assento próximo a janela, mostra a plataforma cheia de gente, disfarça fechando um dos botões de sua camisa e pouco depois o garoto silencia, olhando desconfiado para os lados, disfarçando os olhos lacrimejados.
Agora, emoções contidas, começa a contar os minutos que antecedem aquela viagem.
E olha pela janela toda a movimentação na plataforma da estação, que vai cessando, na medida em que todos embarcam.
Agora só vê o chefe de trem com seu impecável uniforme azul, este sinaliza para a estação, que bate um sonoro sino. Logo depois se ouve um apito, a buzina rouca da Biriba..., mais um apito !
Após uma longa buzinada da máquina, já se ouve o ronco do motor da FA-1 ( a locomotiva modelo FA-1, fabricada pela empresa americana ALCO e apelidada no Brasil, de “ Biriba “).
O trem se põe em movimento, devagar, e entre acenos os passageiros se distanciam cada vez mais da estação de Cruzeiro, que vai ficando para trás naquela agradável tarde de outono.
Novas emoções no decorrer da viagem, esperam por aquele garoto alegre e sonhador. O chefe do trem logo aparece com seu picotador de passagens e brinca com ele, logo surgem as guloseimas que são oferecidas pelos vendedores do trem, tudo é festa !
As paisagens agora passam rápidas; campos, rios, gados, pontes, túneis, estações, crianças acenando nas janelas...
E a Biriba com sua buzina rouca pode ser avistada soltando negra fumaça, quando faz curvas para a esquerda, lado onde se senta o menino com sua família.
Os postes da ferrovia passam correndo, os fios ora se abaixam, ora se levantam, quando da passagem dos mesmos e o trem avança, com destino a Itatiaia, estação de destino daquela viagem.
O garoto não perde uma cena sequer e com o rosto colado na vidraça, registra como se fosse uma câmera, todos as cenas e imagens ao longo do percurso, ora sorrindo, ora acenando, ora sério e absorto nos seus pensamentos.
Em dado momento, percebendo que a sua estação de desembarque se aproxima, pede ao pai que o levante, para que possa ver mais de perto os seus peixes de olhos brilhantes. O pai assim o faz e ele acaricia cada detalhe daquela escultura, conversando silenciosamente com seus amigos prateados, “guardiões daquele trem” , na sua maneira de ver.
Quer beijar o peixe maior, de grandes barbatanas, mas o pai o repreende dizendo-lhe que aquilo está sujo (não entende como uma peixe tão brilhante pode estar sujo...).
Aquele viaduto com um grande tubo passando sobre a linha é a indicação que chegaram à estação em Itatiaia, e logo teriam de descer.
Entristecido olha pela última vez cada detalhe à sua volta, conversa em silêncio mais uma vez com os peixes guardiões, respira profundamente tentando guardar o cheiro do trem nos pulmões e eis que o trem para naquela já conhecida e familiar estação.
Começa a caminhar lentamente pelo corredor, em direção às escadas, gosto amargo na boca, um aperto no peito e de novo aquela vontade incontrolável de chorar...
Desce do trem entristecido, mas eis que vê na estação o seu adorado tio Ismael que com um largo sorriso corre em sua direção e o envolve com um apertado abraço. Mal percebe quando o trem se afasta, pois agora sua atenção está voltada para as pescarias, banhos no rio Bonito, guerrinha de mamonas com a molecada e muita agitação durante aquelas duas semanas de férias que passará em Itatiaia na casa dos tios.
Todos os dias, porém, quando se aproxima o horário da passagem do D.P., lá vai ele para a estação tentando respirar aquele misterioso “cheiro de Trem de Aço“ e lançar ao menos um furtivo olhar para seus amigos prateados, guardiães daquele fantástico trem que tanto adora.

                                                                                    Antonio Carlos Arruda

domingo, 14 de junho de 2015

O TELEGRAFISTA


Na pequena estação esquecida no alto da serra, reinava o silêncio e a solidão naquela abafada noite.
O ar parado, sequer as folhas das árvores se mexiam... Uma atmosfera misteriosa rondava o ambiente.
O manobreiro cochilava com a cabeça apoiada sobre a mesa, espantando com as mãos os pernilongos que insistiam em “cantar” nos seus ouvidos.
José Francisco Neto, o telegrafista, incomodado com a monotonia do ambiente, prefere sair e sentar-se sobre a plataforma vazia e escura. Enquanto isso observa as estrelas, na expectativa de que uma suave brisa venha lhe acariciar os cabelos...
De repente, o silêncio é quebrado pelas batidas da palheta do telégrafo e ”de ouvido” pega uma mensagem misteriosa: “... a solidão toma conta de mim...”
Corre para o manipulador e pergunta de onde vem a mensagem, quem está do outro lado?
Em resposta, o mais absoluto silêncio...
Ele retira o surrado relógio de algibeira de dentro do bolso, confere as horas e arrepiado constata: os ponteiros apontam para o infinito, era meia noite.
Calafrios percorrem sua espinha, ele olha para o companheiro que ronca debruçado sobre a mesa já sem se preocupar com os pernilongos, este nada presenciara!
O restante do turno corre tranqüilo e sem novidades, mas o impressionado telegrafista não se esquece da misteriosa mensagem captada naquela noite.
Não comenta nada com os amigos com medo de ser ridicularizado, mas ansioso, já fica pensando na próxima noite.
E ela chega mais rápido do que ele imagina... Repete-se a cena: a estação deserta, o silêncio, a atmosfera abafada, o manobreiro dormitando, debruçado sobre a mesa...
Desta vez ele não vai para a plataforma, fica “grudado” no telégrafo aguardando a “hora grande”.
E no momento exato em que os ponteiros se juntam e o relógio da estação começa a bater as dozes badaladas noturnas, uma nova mensagem começa a se desenhar nos pontos e traços da amarelada fita: “... nesses momentos de sofrida solidão...”
Mais uma vez calafrios violentos tomam conta do corpo do telegrafista que passa as mãos sobre os cabelos ao sentir que estão arrepiados...
Com as mãos trêmulas e os olhos orvalhados de emoção, pergunta mais uma vez se aquilo é brincadeira de algum colega de outra estação, pergunta se algum outro telegrafista captara a mensagem....
De novo tem como resposta, o mais absoluto silêncio...
Corre para o banheiro, lava o rosto, se olha no espelho...
Toma uma caneca de café quente, sai no pátio e observa a passagem de um trem cargueiro, que desaparece na curva, deixando para trás a fumaça cheirosa do carvão mineral e os apitos que ecoam nas encostas da serra.
Nos próximos dias não consegue mais pensar em outra coisa, sente-se obsidiado pela idéia, ansioso por chegar ao fim dessa misteriosa história.
E as mensagens se sucedem nos próximos três dias, completando a enigmática mensagem, que em rimas dizia:
” A tristeza toma conta de mim,
Nesses momentos de sofrida solidão.
Desde que daqui parti,
Sangrando está meu coração.
Por isso me aproximei de ti,
No silêncio desta nossa estação.
E contigo estarei sempre,
Creia, não se trata de sua imaginação.”
E a última mensagem esclarece:
“Quer saber quem sou eu? Veja o Livro de Ocorrências dos Telegrafistas, página 89, ano de 1894”
Surpreso e profundamente impressionado, o telegrafista observa que trata-se de um livro de 90 anos atrás.
Após uma demorada busca nos arquivos empoeirados da estação, finalmente encontra um velho e amarelado livro de capa dura desbotada. Abre o livro na página mencionada e trêmulo de emoção observa entre as anotações referentes às atividades do telegrafista do plantão da noite, disfarçada no cantinho da página, escrito à lápis, uma frase que estivera presente no seu pensamento durante todos aqueles dias:
“... a tristeza toma conta de mim, nesses momentos de sofrida solidão...”
Vira afoito a folha para ver a assinatura do telegrafista e com a vista embaralhada pelas grossas lágrimas que inundam seus olhos, desvenda, enfim todo aquele mistério...
Assina o relatório, o telegrafista José Francisco, seu falecido avô.

                                                            Antonio Carlos Arruda

domingo, 7 de junho de 2015



A CAVALARIA


1974. Uma agradável manhã de outono.
A cerração cobre o campo que se estende em frente à nossa casa, cobrindo o goiabal com aquele doce sabor do sereno da manhã.
Abro a janela do quarto e surpreso, vejo que o “Posto de Desinfecção de Veículos” está tomado de intensa movimentação...
Chegam caminhões verde-oliva, do tipo “gaiolas”, carregados de pomposos cavalos e um grande número de soldados se perfilam sobre a plataforma do posto, enquanto os cavalos são encaminhados a uma grande e improvisada baia às margens do córrego.
Correndo, fui chamar meu irmão para também presenciar o fato inusitado e juntos fomos para a cerca que divisava o grande pátio. Fomos ver de perto o “espetáculo”!!
Soldados em forma, marchando ao ritmo de uma caixa e cornetas tocando marchas militares, empunhando fuzis com baionetas caladas... Aquilo era extraordinário !!!
Nossa casa não tinha água encanada, buscávamos água em baldes, numa torneira que ficava justamente onde a tropa se encontrava aquartelada.
Só havia aquela torneira e ali a tropa se servia de água para o acampamento, o que nos obrigava a disputá-la com aqueles garbosos soldados, o que para nós era motivo de grande contentamento.
Ganhávamos barras de deliciosas marmeladas e além disso tínhamos ajuda para carregar os baldes, o que para nós era muito bom !
De noite dormíamos com as janelas abertas, pois havia sentinelas por toda parte e acordávamos ao som do clarim tocando “alvorada”.
Os exercícios militares, com simulação de combates, a cavalhada tomando água nas canaletas represadas que se transformaram em improvisados bebedouros, as marchas militares, as marmeladas, e todo aquele clima mágico, nos encantaram por aproximadamente duas semanas.
Um dia, para nossa tristeza, não ouvimos o toque de alvorada ao amanhecer. Levantamos depressa e decepcionados pudemos constatar que o Grupamento de Cavalaria do Exército não estava mais acampado no posto. Havia partido durante a madrugada...
Era o fim da nossa fantasia.
Tristes, ainda fomos ver de perto os vestígios das barracas recém-desmontadas, as pegadas dos cavalos e para nossa felicidade, encontramos inúmeras cápsulas deflagradas oriundas dos exercícios de tiros de festim. Guardamos estas relíquias como lembrança daqueles dias memoráveis .Vim a saber, mais tarde, o nome do comandante daquele grupamento que ali acampara. Tratava-se do Cel. João Batista de Figueiredo, que depois foi nosso Presidente da República.
                                                                        Antônio Carlos Arruda