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domingo, 31 de maio de 2015


SAUDADES DE CRUZEIRO



Chamam-me saudosista, mas como não me lembrar com saudade das manhãs orvalhadas em que os trilhos da ferrovia amanheciam molhados de frias gotas a cintilarem a brilhante luz do sol nascente?
 Rotulam-me de nostálgico, porém, como me esquecer daqueles tempos áureos em que a juventude se manifestava com toda sua vitalidade, embalando-me em sonhos e fantasias?
Quantas vezes, sentado às margens da linha, nas minhas divagações, não me vi envergando o garboso uniforme verde-oliva com pelo menos três divisas (sonhava em ser Sargento do Exército).
Este desejo se intensificava quando a locomotiva conhecida como “Canadense” apontava no horizonte com sua buzina rouca e grave e o farol aceso, arrastando especiais militares (muito comuns na época) com carros de combate sobre as pranchas, e no final do comboio, uma classe repleta de soldados.
Debruçado sobre a janela do quarto, nas lindas e enluaradas noites cruzeirenses, observava ao longe a classe de passageiros no final do cargueiro desviado na “linha-2”.
Era o trem misto da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil). Mais conhecido como “Trem Leiteiro” a composição aguardava intervalo para seguir sua longa e demorada viagem rumo à capital paulista.
A luz fraca e amarelada no interior da classe de madeira (que se tornava cada vez mais avermelhada na medida em que os “acumuladores de energia” perdiam sua carga) transportava-me para um universo mágico de imaginações e fantasias de indescritível êxtase.
Morávamos numa das casinhas da “25ª Turma”.
Eram três casas coladas ao alambrado da FNV, muito próximo à Fundição de Aço.
A primeira casa era a nossa, depois vinha a do Sr. Benedito Vieira, depois a do Sr. Nelson Coelho.
Ali ao lado, existia um “embarcadouro”.
Neste local acontecia o baldeio do gado da bitola estreita para a larga. O momento em que o gado saía dos vagões, percorrendo os corredores de trilhos para entrar no outro trem, era um grande atrativo para a molecada. Vibrávamos com aquele grande acontecimento.
Depois de vazios os vagões eram direcionados para o Posto de Desinfecção de Veículos e após lavados, recebiam um banho de cal virgem, com seu gostoso cheiro, branqueando toda a vegetação ao lado da linha do “virador” da Rede Mineira de Viação.
Como esquecer do Sr. Mário Lamas, do Sr. João de Barros, do Sr. Justino, do Osvaldo, do Merlin (todos funcionários do Ministério da Agricultura, que trabalhavam no Posto de Desinfecção).
Aquele foi também o palco das inesquecíveis aventuras com nossos inseparáveis amigos João Carlos e Serginho Lamas, companheiros de aventura no pátio do posto, no goiabal, nas nossas partidas noturnas de futebol.
Ao me envolver nestas recordações, chego a me perguntar por que o tempo implacável nos impõe tantas mudanças e me permito questionar sobre a real vantagem de alterações tão radicais no curso da história e da nossa vida.
Apaixonado por ferrovia, tenho muita saudade dos tempos em que esta brilhava como um meio de transporte eficaz e seguro, com suas ramificações se estendendo por todo o território nacional.
Lembro-me da linda e majestosa estação de Cruzeiro repleta de passageiros que ora chegavam, ora partiam. O entroncamento ferroviário Rio-São Paulo-Minas fazia com que fosse grande o movimento e ali era um dos principais pontos de encontro da juventude cruzeirense.
Quando romances não nasceram naquela plataforma?
Quantas chegadas e partidas?
Quantas lágrimas e sorrisos?
Quantos sonhos de amor não se desfizeram naquela plataforma, embalados pelos silvos estridentes de uma locomotiva a vapor que partia, atravessando a cidade rumo às escarpas da Serra da Mantiqueira?
De um lado a Canadense com a “batida” toda característica de seu motor ALCO, com aquela luzinha amarelada da cabina, esperando a liberação para arrancar com o Expressinho pela madrugada adentro, rumo ao Rio de Janeiro.
Do outro lado da estação, a G-12 de bitola métrica aguardava silenciosamente o momento de partir para Minas, com seu ronco ensurdecedor que fazia tremer as paredes das casas às margens da linha...
Vendedores de salgados ofereciam uma variedade de opções e disputavam espaço com suas bandejas e cestinhas de taquara junto às janelas dos lotados carros de passageiros.
No meio deles, estava eu, um jovem e sonhador vendedor de pastéis, kibes e balangandans (risoles).
Saudades de um tempo que não mais voltará.
Saudades de uma época em que as dificuldades financeiras eram grandes e a luta pela sobrevivência exigia muitos sacrifícios de toda nossa família, porém isso não conseguia afetar o nosso gosto pela vida e a nossa alegria de viver. Éramos muito felizes!
Saudades de uma vida mais tranquila, mais amena, sem ansiedades...
Saudades de um tempo em que as coisas aconteciam com mais vagar, as pessoas respiravam mais pausadamente e andavam ao invés de correr.
Tempos em que os jovens frequentavam as pracinhas da cidade nos finais de semana, para o tão tradicional “footing”.
Chamam-me saudosista, mas como não ser?
Se vivi intensamente esses momentos, faço questão de mantê-los acesos na minha mente, se bem que às vezes entristeço-me com a realidade do hoje.
Nostálgico, talvez seja, mas a cada vez que fecho meus olhos ouço a buzina das locomotivas que fizeram parte da minha infância e adolescência (a Canadense, a Biriba, a G-12) e isso eu não consigo evitar.
Se me concentro um pouco, ouço os apitos melodiosos das Maria-Fumaças, quando viravam o trem de passageiros em frente à minha casa.
E me surpreendo sentindo os cheiros que sentia: cheiro de orvalho no capim-gordura, cheiro de ferro aquecido das caldeiras das máquinas a vapor...
Jamais me esquecerei do cheiro todo característico do interior das classes do Trem de Aço (o DP)
E de recordação em recordação viajo no tempo, retornando àquelas situações ainda muito vivas na minha memória.
E elas estarão eternamente vivas, permanecerão presentes no meu ser por toda a eternidade.
Isso porque os momentos especiais da nossa existência são registrados na essência imortal do nosso ser. O corpo um dia deixará de existir, porém as sublimes recordações serão eternizadas para deleite do nosso espírito.
E a minha querida Cruzeiro estará sempre comigo nesta ou em qualquer outra dimensão onde eu possa estar.
                                                                           Antonio Carlos Arruda

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